sexta-feira, 10 de setembro de 2010


                          foto: léo aversa


                             OS DIAS DE CHACAL

                                                  João Pimentel ( O Globo)


Chacal começou a escrever poesia para tentar se comunicar. Tímido e disléxico, ele também queria dar o seu testemunho, aos 17 anos, do mundo que o cercava em 1968. E que mundo. Rock’n’roll, Godard,
Tropicalismo, AI-5 povoavam a cabeça do menino nascido nos arredores do Jockey, na Gávea, e criado em Copacabana. A poesia chegou a suas mãos e arrombou a porta de sua vida através de um livro de Oswald de Andrade. Passou a escrever e a mostrar sua produção para Hélio Oiticica, Waly Salomão e Torquato Neto.

Aprovado, seguiu seu rumo. Fez seus primeiros livros com a chamada Geração Mimeógrafo; formou o Nuvem Cigana, coletivo de poetas marginais; flertou com o grupo de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone; quase morreu; escreveu o jornal da estadia do Circo Voador no Arpoador; foi compositor da Blitz; quase morreu de novo; e renasceu no CEP 20.000, evento cult de poesia. O poeta que pulou os muros da vida “para poder ir ver, para poder viver” conta como escreveu por linhas tortas suas várias vidas na biografia “Uma história à margem” (7 letras), que ele lança amanhã, às 19h, na Livraria da Travessa de Ipanema.


A ideia de “Uma história à margem” surgiu por acaso, quando preparava “Belvedere”, livro que reuniu sua obra completa, de 1971 a 2007. Estava num voo rumo a Goiás, onde participaria de um encontro de poesia, quando, após uma escala em São Paulo, Augusto Massi, responsável pela linha editorial da Cosac Naify, por onde o livro seria lançado, sentou-se ao seu lado. Conversa animada, Chacal contou algumas histórias.
Massi gostou e sugeriu que ele aproveitasse suas memórias para ilustrar a antologia. Mas a cabeça em turbilhão do poeta já estava longe. Este seria um outro livro... — Por sugestão dele, na volta para o Rio escrevi algumas histórias. De cara saíram umas 20 páginas. Mas fiquei com a sensação de que o livro de poesia seria sufocado pela biografia — conta.


E a intuição de Chacal também se mostraria certeira. Ele provavelmente teria queimado ali a possibilidade de lançar o ótimo cabedal de sua privilegiada memória, que passou incólume por ao menos duas décadas movidas a poesia, sexo, drogas e rock’n’roll. As 20 páginas foram enviadas para um edital da Petrobras com a intenção da editora de publicá-lo. Aprovado o projeto, o poeta e a Cosac Naify não chegaram a um acordo e o livro sai pela 7 Letras.

Dividido em pequenos capítulos, entremeados por depoimentos e poemas, o livro revela, de cara, dois Chacais fundamentais. Um, o poeta de linguagem direta, popular, inventivo que falou “Vou entrar, vou entrar”, venceu a timidez e começou a formatar a ideia de tirar a poesia dos livros, não declamando, palavra que repudia, mas interpretando, dando sons, imagens, suor, humanizando. Muitos de sua geração pensavam igual, mas talvez faltasse o estopim. E ele foi Chacal, numa feira de arte na galeria da livraria Muro, em Ipanema.

O outro Chacal foi o que se entregou de corpo e alma, literalmente, à produção poética, atravessando movimentos, dialogando com as gerações subsequentes à sua, confablando e transformando o estabelecido, aprendendo com o novo. Talvez poucos tenham atravessado com mais transparência a sua própria existência. E, certamente, poucos dos seus pares toparam o desafio do tempo, da mudança de uma geração tocada pelo espírito libertário em plena ditadura militar — que lutava contra o capitalismo e a cultura do descartável —, e que foi, justamente no período de reabertura do país, atropelada pelo “progresso” anunciado.

O poeta com jeito doce e nome de bicho sempre viveu a fundo suas questões. Se nas artes plásticas Hélio Oiticica quebrava paredes e molduras estabelecidas, se no teatro Hamilton Vaz Pereira sonhava com a arte “fora do edifício-teatro, nas escolas, faculdades, clubes e agremiações”, Chacal e sua turma davam um novo
charme — cabelos compridos, roupas coloridas — à poesia. O próprio Chacal se descreve na contracapa: “Para o mundo acadêmico sou um poeta descartável, de poucos recursos e baixo repertório. Para o mundo pop, um poeta, um intelectual, um crânio. E todos têm ra-zão. Menos eu. Menos eu.”

O poeta que fez um samba para o Suvaco do Cristo — filho do anárquico bloco Charme da Simpatia, da turma da Nuvem Cigana —, homenageando Nise da Silveira (“Saúde não se vende/ Loucura não se prende/ Quem tá doente é o sistema social”), teve a vida marcada por dois acidentes graves, em momentos de crises existenciais e excesso de álcool e drogas, quando sua opção pela li-
berdade se viu atropelada e jogada pela janela.

Em 1978, foi abalroado na Avenida Paulista, bêbado e decepcionado com uma experiência ruim, antes do espetáculo “Trate-me leão”, do Asdrúbal. Alguns dentes perdidos e algumas semanas depois estava de volta ao Rio, de bengala, para um ensaio do Charme. Já em 1987, diretor artístico da boate Barão com Joana, saiu de lá com Cazuza para saideiras, até serem expulsos do último bar. Já de manhã, deixou o amigo em casa, no prédio em que mora hoje, na Gávea, e seguiu, trôpego, em direção ao Horto. Mas, ao ver o muro do Jockey, resolveu pulá-lo. Foi pego por um segurança e trancafiado em uma sala.— Estava em crise, sem dinheiro, sem perspectiva, com um casamento marcado. Depois fui ver que a droga e tudo o mais me fizeram entrar em um processo louco de regressão. E pular o muro do Jockey era voltar para a minha infância, para a minha casa — traduz Chacal. — Quando me vi preso, enlouqueci e pulei da janela. Acordei no Miguel Couto e fui saber de tudo pelo boletim de ocorrência.

As duas quase mortes são vistas como renascimentos. Principalmente a segunda, quando se achava distante de seus pares. Depois do voo cego no hipódromo, na busca pelo seu centro, entre sessões de bioenergética, foi convidado pelo poeta Guilherme Zarvos para uma das Terças Poéticas, evento que propunha um diálogo entre poetas jovens e rodados. Era o embrião do CEP 20.000. E Chacal era a pessoa ideal para fazer essa interface, que já dura 20 anos:— É difícil para mim entender os mais jovens, que não viveram a utopia dos anos 70 e uma ditadura. Não posso exigir dos jovens. Cada ácido que a gente tomava fazia parte de uma busca. Hoje as drogas também atiçam os estímulos sensoriais, mas é o barato pelo barato. Então tento aprender com eles, que têm o poder da vitalidade da juventude.

O mesmo poder que ele tinha quando decidiu ganhar seu pão com poesia e ainda brigar pelo troco:— No primeiro momento, apaixonado pelo livro do Oswald de Andrade, escrevi e mostrei para as pessoas. Depois me vi em um beco sem saída. O que fazer? Não tinha jornal ou agência de publicidade, que poderiam ser caminhos naturais, para trabalhar. Então tive que enlouquecer e dar um jeito de ser poeta.






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