quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Memórias de Chacal: longa jornada poesia adentro


ter, 07/09/10
por Luciano Trigo
http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/


É estranho pensar que Ricardo de Carvalho Duarte, o Chacal, está perto de completar 60 anos: é que, permanecendo fiel ao espírito jovem, irreverente e contestador que marcou a sua primeira produção, na década de 70, época da Nuvem Cigana e da geração-mimeógrafo, ele continua escrevendo e vivendo como quem começa, e não como quem conclui, um livro ou uma aventura. Antecipando-se ao número redondo e talvez assustador, Chacal está lançando o livro de memórias Uma história à margem (Editora 7 Letras, 264 pgs.R$39), um balanço informal de sua trajetória como poeta e agitador cultural. A noite de autógrafos no Rio de Janeiro acontece nesta quinta-feira, a partir das 19h, na Livraria da Travessa de Ipanema.


Uma história à margem é o complemento perfeito e em prosa a Belvedere (Cosac & Naify, 384 pgs. R$59), volume que reúne sua poesia completa – 13 títulos ao todo, lançados entre 1971 e 2007. Recapitulando com franqueza as circunstâncias nem sempre fáceis de cada criação, com destaque especial para suas inúmeras viagens (interiores e exteriores), Chacal faz de suas memórias um documento quase sociológico sobre uma geração que, nas brechas e no contrapé da repressão política, conseguiu produzir uma obra relevante e arrojada, levando a poesia para a vida e a vida para a poesia (gente como Cacaso, Ana Cristina César, Waly Salomão etc). Nesta entrevista, Chacal fala um pouco mais sobre sua história e os prazeres e desafios de ser poeta.


- Apesar de todos os percalços, a geração de poetas que apareceu nos anos 70 – você, Cacaso, Francisco Alvim, Ana Cristina César etc – construiu uma obra que teve uma grande repercussão social e cultural. Hoje a impressão que eu tenho é que a poesia dos jovens autores, por melhor que seja, repercute menos. Você concorda? Como analisa isso?
CHACAL: Difícil comparar épocas, contextos diferentes. Talvez a poesia naquele período estivesse muito formal, distante das pessoas e leitores em geral. Então, sem o compromisso com a regra e o cânone, mais próximo do cotidiano nos temas e no tom, em meio a um mar de censura e repressão, nossa poesia aconteceu. simplificando, nossa poesia atingia as pessoas, embora a academia, de uma forma geral, não achasse graça nenhuma. Creio que hoje esse processo se inverteu. os poetas são a própria academia e escrevem para seu pequeno grupo, uma poesia intertextual e canônica. Por outro lado, a poesia das periferias, ligadas ao rap e ao hip hop, falam também de seu gueto e não se universaliza. Ainda assim, são ainda os únicos lugares onde a poesia vigora.
- Você escreve que, no início dos anos 70, os caminhos dados eram a luta armada ou o sistema, ambos impossíveis de trilhar. De que forma esse impasse afetou a sua vida e a sua poesia, na época?
CHACAL: Trazendo a poesia para a vida. A arma do poeta é o poema, tenha ele cunho social ou não. Nossa atitude diante da poesia, apresentando ela ao vivo em grandes artimanhas que se misturavam com o carnaval e o dia-a-dia, nosso contato direto com o leitor /ouvinte, nossa estratégia de evitar as editoras, o sistema oficial elitizado da produção literária, com todos os vícios da produção capitalista de exploração da mão de obra do autor e do apadrinhamento compulsivo. Lutamos sem pegar em armas, sabotamos o sistema pelas bordas, pelas margens
.- Hoje, que não existe mais luta armada (só o sistema), quais são os caminhos possíveis para os jovens? Existem ainda margens para ocupar ou todos os espaços já foram ocupados pela lógica do consumo? Ou, para usar uma metáfora sua, é mais difícil combater o espantalho ou o agrotóxico?
CHACAL: O espantalho é um falso inimigo. Está do lado de fora e não questiona nossos vacilos e fraqueza. Derrotá-lo é uma questão de força, inteligência e persistência. Já o agrotóxico, a droga do mundo pós-industrial, dessa cultura líquida, como quer Bauman, é muito mais difícil de vencer. Ele é invisível, inodoro e letal. Quando assimilado, se transforma em cinismo, em auto-indulgência. Quando você vê, já está usando a voz do dono. Mas creio que com saúde, discernimento e entusiasmo, você consiga achar de novo sua voz. Os jovens de todas as idades saberão sempre onde o calo dói e inventarão seu jeito de dar um jeito.
- Você vai fazer 60 anos em 2011. Como lida com a perspectiva da velhice? O que a idade traz de bom e de ruim, para a vida e para a obra?
CHACAL: A idade faz mal aos olhos. Em compensação encorpa a voz. Nossas paranóias da juventude se transformam em tiques nervosos. O tempo é fundamental para você adensar sua obra, capinar seu caminho de pregos e espinhos. depois de um tempo, é só juntar tudo, colocar num saco, jogar fora e virar vilão de teatro infantil. Mmmoooouuuuhhhhh!!!!!
- A questão das drogas, associadas na época da ditadura à contestação e a uma atitude libertária, contracultural, hoje é inseparável da questão do tráfico como crime organizado. Como você analisa isso?
CHACAL: As drogas continuam por aí. O que mudou foi nossa crença em mudar o mundo. Antes a droga era combustível para tal. Hoje, com o mundo mudado, a droga se transformou em mais uma mercadoria, uma forma terminal de tapar o imenso vazio.
- De todas as viagens que você narra no livro, quais foram as mais marcantes para você, e por quê?
CHACAL: A viagem para a Inglaterra em 1972/73 foi uma delas. Por ter visto Allen Ginsberg, o melhor do rock na época e ter vivido em um país rico e civilizado, meu sonho da contracultura. Mas toda viagem é uma viagem. Depende dos seus óculos.
- Sobre o episódio da queda no Jóquei, no qual você foi parar no hospital, que lição ficou? [em 1987, depois de uma "noite de saideiras" com Cazuza, Chacal teve a ideia de pular o muro do Jóquei Club.Trancafiado numa sala por um segurança, saltou da janela e foi parar no Miguel Couto]
CHACAL: Quando cair de uma certa altura, flexione os joelhos. Antes de querer voar, aprenda a andar na terra.
- O problema do desafio de viver, materialmente falando, da poesia, atravessa todo o livro, com crises e dívidas recorrentes. Ao longo das décads isso mudou? A literatura está mais profissionalizada hoje, ou a realidade continua inviável? Como essa situação poderia melhorar?
CHACAL: Acho que a performance trouxe novo oxigênio para a poesia. Assim com o rap e a música popular, tem um público não-especializado, de não-literatos. Isso abre o mercado para o poeta. Mas para aumentar a demanda teria que ter uma ação conjunta, estado-escola-mídia-editoras-poetas. O Estado, com o PNBE (Programa Nacional de Biblioteca Escolar), ajuda mais as editoras que propriamente a popularização da poesia. Poetas, escritores de diversos estilos e gerações, têm que ir às escolas, conversar com os alunos, falar de seus trabalhos e ouvir os trabalhos dos alunos, estimulados pela escola a ler e criar. Essa troca é fundamental. Ela criou o CEP 20.000, um sarau multimídia, que é um excelente modelo de disseminação poética. Educação e cultura são uma coisa só. Aumentando o interesse pela poesia, a mídia e as editoras vão se interessar em programá-la e publicá-la. Como aconteceu com o rap. Os poetas poderiam ajudar se tivessem um pouco mais intenção de se comunicar do que apenas expressar suas caraminholas.
- Com que poetas vivos você dialoga hoje? Como enxerga a produção poética brasileira contemporânea, de uma forma geral?
CHACAL: O poeta é bicho difícil de dialogar, mas gosto de vez ou outra encontrar o Gullar, o Cícero, o Eucanaã, o Carlito Azevedo, o Heitor Ferraz, o Chico Alvim, o Zuca Sardana, o Ricardo Aleixo, a Angélica Freitas. A produção contemporânea vai bem, obrigado. A exuberância do CEP, depois de 20 anos, é reflexo disso. A nova geração está conseguindo juntar as experiências de vida dos anos 70 e o acabamento mais elaborado do novo milênio.
- Tem outro livro a caminho? tem algum poema inédito que você possa antecipar?
CHACAL: Tenho escrito volta e meia. Um dos poemas que gosto de fase mais recente e que ainda está em processo é:


FELIZ 2008

narrar um assassinato
é quase tão difícil como dizer que te amo

como falar do sangue que se esvai ou
vc cantarolando numa aléia do horto de vestido florido
como descrever o terror dos olhos e o grito sequelado ou
vc vendo tv de calcinha de algodão
como dizer da arma ainda quente ou
seu corpo mole na cama

essas coisas do amor e do ódio
são impossíveis de narrar.
         chacal

Um comentário:

  1. Chacal!
    O blog está lindo, boa sorte!
    Admiro muitissimo seu trabalho!
    bjos
    Camila

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